Victor Trajano de Almeida Rodrigues
Mestrando em Direito Penal pela FADIC.
Advogado na área penal empresarial
Resumo: A repressão intensa à criminalidade econômica tornou-se o epicentro das preocupações político-criminais da atualidade. Crimes outrora relegados pelo Direito Penal, hoje constituem alvos recorrentes dos órgãos de persecução penal. O objetivo deste artigo é compreender os reflexos jurídicos e sociais que a intensa reação à criminalidade econômica tem provocado. Para tanto, analisa-se, inicialmente, as principais razões que levaram a criminalidade econômica aos holofotes do Direito Penal Moderno . Depois, examina-se os índices oficiais brasileiros de informações penitenciárias, a fim de identificar se a intensa persecução penal (e midiática) contra os poderosos, efetivamente, reflete na população carcerária brasileira.
Palavras-chave: Expansionismo penal; criminalidade econômica; persecução penal; encarceramento.
Abstract: The intense repression of economic crime has become the epicenter of political-criminal concerns today. Crimes relegated by Criminal Law are now recurrent targets of criminal prosecution. The purpose of this article is to understand the legal and social consequences that the intense reaction to economic criminality has caused. Therefore, it is initially analyzed the main reasons that led economic criminality to the spotlight of Modern Criminal Law. Then, the official Brazilian prison information indexes are examined in order to identify whether the intense criminal (and media) prosecution against the powerful actually reflects on the Brazilian prison population.
Keywords: Penal expansionism; economic crime; criminal prosecution; incarceration.
Introdução
O desenvolvimento da ciência penal nada mais é do que o fruto das preocupações político-sociais identificadas em determinado contexto histórico de determinada sociedade. Daí que assuntos como bruxaria e religião, por exemplo, refletiram a intolerância do Direito Medieval e a preocupação com o furto justificou a pena de morte no Livro 5º, título LX, das Ordenações Filipinas¹.
A política criminal contemporânea passou a se ocupar de temas anteriormente relegados pelo Direito Penal, como por exemplo: crimes empresariais, tributários, ambientais etc. Atualmente, os meios de reação intensa à criminalidade econômica constituem os pontos mais latentes dos debates da política criminal contemporânea².
Compreender a mudança de paradigma do Direito Penal moderno (consistente no maior interesse da punição dos crimes econômicos), as causas da referida expansão penal, e, por fim, seus efeitos, são os objetivos e os pilares que nortearão os tópicos seguintes.
1. Criminalidade econômica: a nova preocupação do Direito Penal
O cerne da discussão político-criminal da atualidade é que o “Direito Penal tem-se ocupado dos fenômenos socialmente marginais (muito vinculados ao mundo dos sujeitos à margem da sociedade), deixando de lado condutas ilícitas enraizadas na lógica do funcionamento social”³ causadoras de graves danos (sobretudo de ordem econômica) ao Estado. O Direito Penal moderno, fruto do expansionismo penal preconizado por Silva Sánchez, transformou-se na “espada da sociedade contra a delinquência dos poderosos”.⁴
Historicamente, contudo, essa não era a preocupação central da sociedade e do ordenamento jurídico-penal. Ocorre que uma nova sociedade demanda um novo direito penal. O ordenamento jurídico é um mero instrumento a serviço da sociedade e de seus cidadãos e, como tal, deve adaptar-se aos tempos em que deve ser aplicado. Partindo desta premissa, o Direito Penal não pode e não deve acomodar-se em torno do núcleo tradicional, convertendo-se em um corpo normativo obsoleto, incapaz de afrontar as novas demandas sociais. Muito ao contrário, deve evoluir e fazer frente, junto aos perigos clássicos, aos novos riscos que venham a aparecer.⁵
As questões e os anseios político-sociais postos em debates na atualidade demonstram a superação da leniência com que a criminalidade econômica costumava ser tratada. Nesse viés, os crimes econômicos tornaram-se o principal objeto do Direito Penal moderno, justificando recorrentes alterações no ordenamento jurídico-penal (e também na jurisprudência) como meio de instituir reações intensas à dita criminalidade, que, sem dúvidas, constitui a mais forte preocupação do novo Direito Penal.
Essa postura doutrinária e legislativa repressiva à criminalidade econômica tem-se mostrado como “tendência claramente dominante na legislação de todos os países, que caminham na direção de introduzir novos tipos penais, agravar os já existentes e reinterpretar as garantias clássicas do Direito Penal e Processual Penal”⁶.
2. Principais razões que levaram a criminalidade econômica aos holofotes do Direito Penal Moderno
A fim de possibilitar uma melhor compreensão da problemática posta em debate, imprescindível identificar algumas das principais causas da nova tendência mundial em se reprimir a criminalidade econômica (âmbito da criminalidade por muito tempo “esquecida” pelo aparelho estatal repressivo). De início, e como já antecipado, aponta-se a transformação dos anseios sociais e dos objetos de preocupação da política-criminal, reflexos de um novo contexto histórico-social.
Outro fator primário é a frequente busca Estatal por soluções fácies aos problemas sociais, decorrente do consenso ideológico de que o Direito Penal é instrumento de proteção dos cidadãos. Acrescenta-se a isso a comodidade e a popularidade que a classe política encontra (não sem os aplausos de grande parcela dos eleitores) na utilização do Direito Penal como remédio aos problemas sociais, de modo especial à criminalidade. É o que se infere dos estudos de Roxin: “o medo da criminalidade entre os cidadãos, aumentado pelas reportagens da mídia, tornam a exigência de penas mais duras um meio cômodo para que muitos políticos consigam votos”.⁷
Tem-se, ainda, o fenômeno social conhecido como a institucionalização da insegurança⁸. O modelo de vida social pós-moderno potencializou, qualitativa e quantitativamente, os riscos aos quais os cidadãos estão expostos. A sociedade pós-moderna suporta riscos capazes de abalar a própria existência humana, trata-se de uma “auto ameaça civilizatória”⁹ constante, que causa inquietude, comoção e medo nos cidadãos. Não se tolera mais os graves danos que a criminalidade econômica pode causar à sociedade.
3. Reflexos negativos da repressão à criminalidade econômica
Nesse novo momento cultural, marcado pela máxima proteção estatal, a criminalidade dos poderosos tornou-se o epicentro da repressão penal, não só por meio do recrudescimento das leis, mas pela flexibilização de garantias perante os Tribunais. A relativização de garantias e de regras de imputação, a fim de alcançar a condenação daqueles que anteriormente não ocupavam os bancos dos réus, pode ensejar, reflexamente, na flexibilização das garantias contra os não poderosos.
Contudo, majoritariamente os processos criminais são contra os mais vulneráveis e não contra mais os poderosos. Daí o perigo de relativizar garantias em nome da condenação de poderosos: haverá inegável repercussão sobre a criminalidade em geral, não só dos poderosos, mas também dos mais pobres.¹º
Nas palavras de Jiménez Díaz, aliás, essa é uma das consequências mais nefastas do expansionismo penal: “de forma velada, introduzir um modelo de Direito Penal da segurança dos cidadãos que, longe de ter por objeto a nova delinquência [econômica], incide sobre a delinquência clássica com a única finalidade de fazer mais rigorosa a resposta penal contra ela”¹¹.
Para lastrear essa compreensão lógica basta analisar os números disponibilizados pelo Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), através do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (dados colhidos até dezembro de 2020), que demonstram que do total de 697.452 (seiscentos e noventa e sete mil, quatrocentos e cinquenta e dois) presos no brasil, 285.349 (duzentos e oitenta e cinco mil, trezentos e quarenta e nove), ou seja, 40,91%, são por crimes patrimoniais, 208.530 (duzentos e oito mil, quinhentos e trinta), isto é 29,9%, por tráfico de drogas, 105.559 (cento e cinco mil, quinhentos e cinquenta e nove), 15,13%, por crimes contra a pessoa, e apenas 4.106 (quatro mil cento e seis), 0,59%, por crimes contra a fé pública, e 869 (oitocentos e sessenta e nove), 0,12%, por crimes contra a administração pública¹².
Considerações finais
A expansão do Direito Penal moderno, cuja principal característica é a reação intensa à criminalidade econômica, é o reflexo do novo contexto político-social vivido no atual momento da história. É a constatação do desenvolvimento da ciência penal como fruto do estímulo provocado pela alteração dos anseios sociais.
As principais causas que justificaram o interesse na reação intensa à criminalidade econômica são: o novo contexto histórico-social contemporâneo, a utilização do Direito Penal como remédio aos problemas sociais, e a institucionalização do medo, da insegurança. Fatores que convergem para a intolerância em relação aos crimes econômicos, outrora aceitos como condutas enraizadas na lógica do funcionamento social.
Não obstante a reação intensa à criminalidade econômica, os índices oficiais demonstram que os presídios brasileiros estão majoritariamente preenchidos por presos (condenados e presos preventivos) pobres (réus em processos de crimes patrimoniais, violentos e de tráficos de drogas).
Dessa forma, a relativização de garantias, de regras de imputação, de redução de exigência probatória para a condenação de réus em processos de criminalidade econômica abre precedentes para que a mesma relativização ocorra nos processos cujos réus são vulneráveis (nos delitos do direito penal clássico).
Referências
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021.Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen>. Acesso em: 05 de out de 2021.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
JÍMENEZ DÍAZ, María José. Sociedad del riesgo e intervención penal. Revista Eletrónica de Ciencia Penal y Criminología (em línea). 2014, núm. 16-08, p. 08:01-08:25. 09 de out. de 2014.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução: Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal empresarial: a omissão do empresário como crime. Coleção Ciência Criminal Contemporânea. vol.5. Coordenação: Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
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¹ SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal empresarial: a omissão do empresário como crime. Coleção Ciência Criminal Contemporânea. vol.5. Coordenação: Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p.19.
² SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Política criminal y persona. 1. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p.15-23.
³ SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Prefácio in SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal empresarial: a omissão do empresário como crime. Coleção Ciência Criminal Contemporânea. vol.5. Coordenação: Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p.10.
⁴ SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001, p.53.
⁵ JÍMENEZ DÍAZ, María José. Sociedad del riesgo e intervención penal. Revista Eletrónica de Ciencia Penal y Criminología (em línea). 2014, núm. 16-08, p. 08:01-08:25. 09 de out. de 2014. p. 20.
⁶ SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001, p.20.
⁷ ROXIN, Claus. Tem futuro o direito penal?. In: Estudos de direito penal. ROXIN, Claus. Tradução: Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.18.
⁸ SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001, p.28-31.
⁹ BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 27.
¹º SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001, p.57-58.
¹¹ JÍMENEZ DÍAZ, María José. Sociedad del riesgo e intervención penal. Revista Eletrónica de Ciencia Penal y Criminología (em línea). 2014, núm. 16-08, p. 08:01-08:25. 09 de out. de 2014. p. 22-23.
¹² Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021.Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen>. Acesso em: 05 de out de 2021.
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